quarta-feira, 24 de setembro de 2008

"Esta bala não era dirigida a Lacerda, mas a mim" (Getúlio Vargas)

"Tenho a impressão de me encontrar sobre um mar de lama"
"Se me quiserem depor, só encontrarão o meu cadáver"

Estas são frases que, ditas ou não por Getúlio Vargas, ficaram no imaginário coletivo como uma síntese dos graves acontecimentos da política brasileira que culminaram no suicídio do presidente, em 24 de agosto de 1954.

Carlos Lacerda (de bengala). Rio de Janeiro (DF), agosto de 1954. A constante e ferrenha oposição a Vargas e ao seu governo, comandada pela União Democrática Nacional (UDN) e por Carlos Lacerda, não era novidade no cenário político brasileiro. Os opositores de Vargas, que vinham desde os tempos de seu primeiro governo, tiveram no episódio que passou para a história como o Atentado da Tonelero uma chance ímpar de "batalhar" pela causa da renúncia. A responsabilidade pelo atentado que em 5 de agosto visou Lacerda, mas vitimou o major-aviador Rubens Vaz, foi imediatamente atribuída ao governo, mais precisamente, ao presidente Vargas. Mais uma vez Lacerda usou a Tribuna da Imprensa, de sua propriedade, para atacar, declarando: "Perante Deus, acuso um só homem como responsável por esse crime. Este homem chama-se Getúlio Vargas". Era o início do fim.

Benjamim Vargas no Palácio do Catete. Rio de Janeiro (DF), agosto de 1954.Momento a momento, os 19 dias transcorridos entre o atentado e o suicídio de Vargas foram marcados por um pesado jogo político. Alas expressivas das Forças Armadas, principalmente ligadas à Aeronáutica, colocaram-se frontalmente contra o governo, enquanto a oposição, no Parlamento, demonstrava a cada dia sua decisão de afastar Vargas da presidência. Para muitos, aliás, Getúlio nunca deveria ter voltado. Como voltou, tinha que ser vencido. Nesse jogo duro, seus adversários venceram o primeiro tempo, pode-se dizer, com um gol contra. Logo nas primeiras horas da investigação policial, ficou claro o envolvimento de funcionários do Palácio do Catete. A cada dia, mais se descobria sobre esse envolvimento, que chegou ao chefe da guarda pessoal do presidente, Gregório Fortunato. Nada mais faltava à oposição. A renúncia passou a ser palavra de ordem, mas Vargas parecia, ainda, confiar numa solução lhe que fosse favorável.

Aeroporto do Galeão durante o inquérito policial militar. Rio de Janeiro (DF), agosto de 1954.No dia 12, ocorreu um fato que iria dificultar ainda mais as coisas para o governo. A pretexto de a vítima fatal do atentado ser um oficial da Aeronáutica, a oposição conseguiu transformar o inquérito policial, conduzido pela polícia civil, num inquérito policial militar – IPM –, sob responsabilidade da Aeronáutica. A partir desse momento, toda a investigação passou a ser comandada da base aérea do Galeão que, na época, ficou conhecida como a "República do Galeão", pela amplitude dos poderes que lhe foram confiados.

Fecha-se o cerco mais um pouco. Ao ser preso, no dia 13, Alcino João do Nascimento, assassino confesso do major Vaz, novas acusações respingam no presidente: teria havido envolvimento de familiares seus. Novamente a oposição ocupa a tribuna da Câmara para exigir a renúncia. Afonso Arinos, líder da bancada udenista, em um de seus discursos, pede a Vargas que "tenha a coragem de perceber que seu governo é hoje um estuário de lama e um estuário de sangue".

Afinal é preso o último envolvido no atentado, Climério Euribes de Almeida, que acusa Gregório de tê-lo contratado para eliminar Carlos Lacerda. Novas denúncias de que um dos filhos do presidente mantinha negócios escusos com o chefe da guarda abalam a já frágil sustentação política do governo. O cerco continua a se fechar.

Três dias antes do trágico final, o Exército entra em prontidão no Rio de Janeiro, e a Aeronáutica e a Marinha declaram "estado de alerta". Mais uma vez Vargas declara que não renunciará.

Dois dias antes do trágico final, novamente os militares exigem a renúncia e, novamente, Vargas não a aceita. Ao ouvir a proposta, Vargas teria dito "daqui só saio morto".

Na véspera do trágico final, começa a circular na esfera militar um documento assinado por alguns generais apoiando a decisão da Aeronáutica e da Marinha de exigir a renúncia do presidente. Sabedor da existência do documento, que ficou conhecido como Manifesto dos generais, mais uma vez Vargas declara que não renunciará. O cerco continua a se fechar. Anotação de Alzira Vargas, feita durante a última reunião ministerial, registrando a decisão do presidente de se licenciar.

Certidão de óbito de Getulio Vargas emitida em 2 de fevereiro de 1965. Na noite que antecede o trágico final, com pouco espaço de manobra, Vargas reúne seu ministério para avaliar a real situação, àquela altura, já muito grave. Ouvidos os seus colaboradores, aceita licenciar-se até que o IPM estivesse concluído. Naquela madrugada do dia 23 para 24 de agosto, o país tomou conhecimento da decisão do presidente. Poucas horas separaram este comunicado da notícia que Vargas recebeu, de que os generais não aceitavam a solução da licença. Ou renunciava ou seria deposto.

O cerco se fecha, e mais uma vez Vargas declara que não renunciará.
Palácio do Catete durante o velório do presidente Getúlio Vargas. Rio de Janeiro (DF), 24 de agosto de 1954. João Goulart no velório do presidente Getúlio Vargas. Rio de Janeiro (DF), 24 de agosto de 1954.
Cortejo fúnebre na Praia do Flamengo. Rio de Janeiro (DF), 25 de agosto de 1954. Embarque do corpo do presidente Getúlio Vargas no aeroporto Santos Dumont com destino ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro (DF), 25 de agosto de 1954.

Às 8:30 do dia 24 de agosto, Getúlio Vargas, presidente do Brasil por 19 anos, com uma carta-testamento e um tiro no coração, cumpre com o que teria prometido durante a crise: "Se me quiserem depor, só encontrarão o meu cadáver".

Suely Braga